500 milhões de dólares. Esse é o valor aproximado de quanto o mercado
de vinhos raros tem movimentado por ano somente nas casas de leilão nos
últimos três anos. Pode até parecer pouco quando se compara com as
vendas globais de vinho mundo afora que passam de US$ 150 bilhões por
ano. No entanto, o mercado de rótulos raros tem visto consideráveis
aumentos nos últimos anos, batendo recorde atrás de recorde de preço
desses tesouros engarrafados.
Um dos casos mais emblemáticos ocorreu há pouco menos de 30 anos. Uma
garrafa de Château Lafite de 1787 que teria pertencido a Thomas
Jefferson foi à leilão em 1985 e acabou comprada por Christopher Forbes
pela bagatela de 105 mil libras (o que equivaleria a mais de R$ 600 mil
atualmente), o maior valor já pago por uma garrafa de vinho na história.
Cerca de 20 anos depois, porém, o bilionário Bill Koch, que havia
comprado algumas das garrafas que supostamente também eram de Jefferson,
passou a suspeitar e investigar a origem delas. Sua equipe não foi
capaz de encontrar uma relação das garrafas com o ex-presidente
norte-americano, rastreando-as somente até a pessoa que as enviou à casa
de leilão, Hardy Rodenstock, um colecionador alemão que alega ter
encontrado essas raridades em uma residência parisiense abandonada, mas
diz se reservar o direito de não divulgar o local.
Diante das contradições encontradas pelos investigadores (entre elas,
a marca Th. J. na garrafa parece ter sido feita com uma ferramenta
moderna), desde 2006, Koch processa Rodenstock por falsificação e até um
livro já foi feito sobre o caso (“O vinho mais caro da história”), que
ainda corre na justiça norte-americana e cujo final parece distante já
que o colecionador alemão se recusa a ir aos Estados Unidos participar
do julgamento.
Desde então, o mundo do vinho tem estado mais alerta, casos de
falsificações esporádicas apareceram aqui e ali, preocupações com
falsificadores na China aumentaram, contudo, recentemente, um caso
deixou colecionadores, casas de leilão e negociantes de vinho
completamente atônitos.
Acredita-se que, durante a última década, o indonésio Rudy Kurniawan
tenha inundado as adegas dos colecionadores com falsificações. Em 2012,
ele foi preso em sua casa com inúmeros materiais que lhe incriminavam,
como rótulos, carimbos, rolhas, garrafas etc, tudo preparado para
falsificar marcas de vinho consagradas. No final do ano passado, um júri
norte-americano sentenciou-o como culpado no que está sendo considerado
o maior caso de falsificação da história do vinho.
Leilão da “The Cellar II” angariou nada menos que US$ 24,7 milhões, o recorde mundial
“Vida de bacana”
Para se ter ideia dos montantes movimentados por Kurniawan, em
janeiro de 2006, a casa de leilões Acker, Merrall & Condit, cujo
dono era o seu amigo de confraria John Kapon, colocou à venda a chamada
“The Cellar”, com 1.700 lotes vindos diretamente da famosa adega do
indonésio. A venda atingiu impressionantes US$ 10,6 milhões. Não
satisfeito, em outubro do mesmo ano, foi à leilão a “The Cellar II”, que
angariou nada menos que US$ 24,7 milhões, o recorde mundial para uma
única venda dessa natureza.
Em 2006, Kurniawan, com apenas 30 anos, estava no auge e era um
habitué entre a high-society do vinho, com diversas amizades entre os
principais colecionadores, ricaços e celebridades de Hollywood, já que
vivia na Califórnia. Na época, ele era conhecido como “Mr. Conti” ou
“Mr. 47”, em referência ao vinho de Romanée-Conti e à safra de 1947, uma
das mais prestigiadas do século XX. Vivia cercado de famosos, vestindo
roupas de grife, usando carros de luxo e dando festas regadas a muito
vinho raro, sendo extremamente generoso com os amigos.
A ascensão do imigrante indonésio a essa vida de glamour foi
meteórica e pouco questionada na época. Sabe-se que ele ingressou nos
Estados Unidos no final dos anos 1990 com um visto de estudante. Logo no
começo dos anos 2000, ele já estava comprando vinhos em profusão,
gastando cerca de US$ 1 milhão por mês, mesmo admitindo que era um
enófilo novato.
Caso das garrafas que teriam pertencido a Thomas Jefferson ainda estão na justiça
Sentindo-se enganado, o bilionário Bill Koch começou uma cruzada contra os falsificadores, entre eles Rudy Kurniawan
Em entrevista, chegou a dizer que seu primeiro gole foi de um Opus
One logo depois que chegou aos Estados Unidos e, em seguida, ficou
encantado por esse mundo. O dinheiro para adquirir sua coleção, diz-se,
vinha da fortuna familiar, já que ele seria herdeiro de uma abastada
família chinesa.
Em pouco tempo, Kurniawan passou a frequentar confrarias repletas de
celebridades, demonstrando grande interesse e também profundo
conhecimento de degustação. Aos poucos, fez sua fama, pagando a conta
dos vinhos raros consumidos em suas confrarias, além de levar rótulos de
sua própria adega para os encontros. Um dos lugares preferidos para as
reuniões era o restaurante Cru, de Nova York. Depois das degustações, o
indonésio sempre requisitava aos garçons que guardassem as garrafas
vazias e as enviassem para ele. Um hábito até então não questionado pela
gerência do restaurante.
Kurniawan cultivou amizades com o vinho. Quando encontrou John Kapon,
da casa de leilões Acker, Merrall & Condit, passou a oferecer suas
garrafas para venda. Com tantas raridades, Kapon dificilmente recusaria.
As vendas de “The Cellar” e “The Cellar II” fizeram com que sua empresa
fosse catapultada para os primeiros lugares entre leiloeiros do mundo.
Na época, apesar de somente à boca miúda, já havia alguns
questionamentos sobre a autenticidade das garrafas de Kurniawan. No
entanto, para aplacar os boatos, ele mesmo se oferecia para
recomprá-las, caso alguém suspeitasse de algo. E, além dos milhões
ganhos em leilões, “Mr. Conti” ainda vendia quantidades massivas de
vinhos raros para compradores particulares.
Em 2007, porém, suas garrafas já estavam sendo fortemente
questionadas. Tão logo a Christie’s anunciou um lote de magnum de
Château Le Pin 1982 que pertencia ao indonésio, foi obrigada a tirá-lo
do catálogo depois que representantes do produtor alegaram que as
garrafas eram falsas. No entanto, foi somente em 2008 que a máscara de
Kurniawan começou a cair realmente.
Kurniawan
tentou leiloar garrafas falsas de vinhos do Domaine Ponsot, como Clos
de La Roche (abaixo). Foi quando Laurent Ponsot (foto) passou a
investigá-lo
Rótulos, cápsulas e rolhas encontradas na casa do falsificador
Não brinque com a Borgonha
Na noite de 25 de abril, o falsário estava novamente no restaurante
Cru para mais um leilão de seu amigo John Kapon. Entre os lotes, ele
oferecia garrafas do Domaine Ponsot, na Borgonha, entre elas uma do Clos
de la Roche 1929 e 38 do Clos Saint-Denis de safras entre 1945 e 1971.
Alertado da venda por amigos, Laurent Ponsot, herdeiro e proprietário do
Domaine borgonhês, voou para Nova York para impedir o leilão, alegando
que os rótulos eram falsos. Bastava dizer que, até 1982, seu Domaine não
produzia vinhos do vinhedo Grand Cru de Clos Saint-Denis. Foi somente
em 1982 que um parisiense rico comprou um acre de terra lá e pediu à
família Ponsot que a gerenciasse. Sobre a garrafa de 1929 do Clos de la
Roche, esse vinho só foi produzido a partir de 1934. Ou seja, eram todas
indubitavelmente falsas. Kapon, sem pestanejar, retirou-as do leilão e
Kurniawan, ao ser questionado sobre a origem, disse apenas: “Tentamos
fazer o melhor, mas é a Borgonha, às vezes acontece alguma merda”.
Ponsot poderia ter se dado por satisfeito com a retirada dos rótulos
do leilão, mas não. Inquiriu o indonésio sobre a origem e exigiu saber
de onde tinham vindo. Em um jantar com o produtor, Kurniawan deu-lhe o
nome e telefones (ele teria decorado os números para dar mais
credibilidade à história e, quem sabe, desestimular Ponsot a ligar) de
quem havia comprado as garrafas. O insistente Ponsot, todavia, tentou
contatar o tal Pak Hendra, mas não obteve sucesso. Mais tarde, descobriu
que Pak significa “senhor” e Hendra é um dos nomes mais comuns da
Indonésia.
Assim, além de ver seus vinhos cada vez mais questionados, Kurniawan
também passou a ser algo de investigações de Laurent Ponsot, que
descobriu que o indonésio vinha comprando enormes quantidades de vinhos
velhos da Borgonha de negociantes – que até 1970 os vendiam a granel.
Por que ele fazia isso se não costumava consumir esse tipo de vinho?
Nessa altura, contudo, não apenas Ponsot estava no encalço de Kurniawan.
Não demorou muito para que o bilionário Bill Koch – que, depois de
ter processado Hardy Rodenstock, ingressou em uma “cruzada contra os
falsários”, como ele mesmo denomina suas ações – também fosse atrás do
indonésio. Em setembro de 2009, ele processou Kurniawan. O FBI logo
entrou em ação.
A partir de 2007 as garrafas leiloadas por Kurniawan começaram a ser questionadas
Descobriu-se que o nome verdadeiro de Kurniawan era, na
realidade, Zhen Wang Huang, e que ele estava ilegal nos Estados Unidos
há anos
Fim da farsa
No dia 8 de março de 2012, quando tentava leiloar mais alguns lotes
de vinho em um leiloeiro londrino, Kurniawan foi preso em casa e, para a
surpresa dos agentes do governo norte-americano, sua residência estava
repleta de evidências das falsificações. Só de rótulos, havia mais de 19
mil.
Ao saber da notícia da prisão, um aliviado Laurent Ponsot chegou a
declarar ironicamente: “Não se falsifica um Swatch. Um Rolex sim”, dando
a entender que o indonésio tinha sido pego por falsificar um artigo sem
importância.
Depois de um adiamento por causa da colheita no hemisfério norte
(diversas testemunhas eram enólogos e não poderiam deixar seus vinhedos
em setembro – a primeira data marcada), o julgamento de Kurniawan
começou em 9 de dezembro do ano passado e durou uma semana. Entre as
testemunhas ouvidas no tribunal estavam Aubert de Villaine, do Domaine
de la Romanée-Conti, Christophe Roumier, do Domaine Roumier e Laurent
Ponsot,
obviamente.
Esta foi a primeira vez que o governo dos Estados Unidos levou a cabo
um processo criminal contra um falsificador de vinhos. Durante as
investigações, revelou-se que o nome verdadeiro de Kurniawan era, na
realidade, Zhen Wang Huang, e que ele estava ilegal no país há diversos
anos. Além das falsificações, o indonésio ainda pegou lautos empréstimos
em bancos e também com amigos, e não pagou. O promotor Stanley Okula,
encarregado do caso, estimou que o indonésio vendeu cerca de US$ 50
milhões em vinhos falsificados durante os anos em que atuou no mercado.
Após uma rápida deliberação, os jurados consideraram-no culpado dos
crimes. Depois de apelações, no começo de agosto deste ano, Kurniawan
foi sentenciado a 10 anos de prisão, além de ter de pagar US$ 24,8
milhões de restituição para sete de suas vítimas. Ele ainda teve US$ 20
milhões em patrimônio apreendido. “Precisamos saber que nossas comidas e
bebidas são seguras”, disse o juiz Richard Berman ao anunciar a
sentença.
Reflexos
Ainda não se sabe como o caso Kurniawan vai impactar o mercado de
vinhos raros, pois ainda há algumas perguntas sem resposta. Ponsot, por
exemplo, não acredita que o indonésio trabalhasse sozinho nas
falsificações. Ele crê que o criminoso não seria capaz de manter um
sistema tão intrincado por si só. Por outro lado, alguns alegam que a
desorganização de Kurniawan, que foi preso com diversas evidências em
casa, é um atestado de que ele era um “amador com sorte”.
Alguns apontaram Paul Wasserman, especialista em Borgonha e tutor de
Kurniawan em sua educação no mundo do vinho, como cúmplice, mas ele
alega ter tido um papel involuntário na carreira do indonésio. Outros
apontaram ainda para John Kapon, que teoricamente lucrou muito com as
vendas dos vinhos de Kurniawan, mas o dono da Acker, Merrall &
Condit atesta que foi mais um vítima, já que ainda lhe emprestou cerca
de US$ 8 milhões, nunca pagos.
Mais do que o receio de haver cúmplices, o mundo do vinho agora volta
seus olhos para as garrafas vendidas pelo indonésio. Algumas podem ser
rastreadas, outras, vendidas de forma privada e direta, não. O que
impede que seus compradores as recoloquem no mercado para minimizar seus
prejuízos? Segundo especialistas, apenas o medo de uma investigação que
promete continuar. Para os envolvidos no caso, as falsificações
precisam ser rastreadas e destruídas mesmo que a contragosto dos
compradores, para dar credibilidade ao mercado.
“Os efeitos desse crime provavelmente serão sentidos por décadas
enquanto as garrafas falsificadas por Kurniawan continuarem a trocar de
mãos nos leilões e em vendas diretas”, atestaram os promotores do caso. A
ex-sommelier Maureen Downey, que hoje possui uma empresa de consultoria
contra falsificações, acredita que “o mais lamentável é a maneira pela
qual todo esse descalabro fez um enorme dano colateral à confiança do
colecionador”.
Em entrevista recente a uma revista inglesa, ela disse que tem sido
questionada se os leiloeiros farão um melhor trabalho a partir de agora.
Já tendo trabalhado para uma casa de leilões, ela contesta: “Na
verdade, isso é notícia velha para eles, pois os mais respeitáveis
leiloeiros já reforçaram seus procedimentos de autenticação. Isso é mais
uma lembrança para os revendedores e brokers que parecem acreditar que a
fraude é somente parte dos leilões. As casas de leilão são apostas mais
seguras do que a maioria dos varejistas e brokers”.
Um porta-voz da prestigiada casa de leilões Christie’s atesta o que
Maureen disse. “O caso foi um lembrete para toda a indústria de vinhos
raros quanto às sofisticadas medidas que os falsificadores estão usando
para perpetrar fraudes”, disse.
Segundo ele, a Christie’s leva a muito sério a questão da
autenticidade e tem como política um processo de investigação rigorosa
para garantir que todos os vinhos à venda sejam autênticos. “Também
encorajamos compradores a certificarem-se sobre a autenticidade do vinho
que compram”, afirma e completa: “No improvável caso de um comprador
voltar à Christie’s (dentro de um tempo razoável) com alguma evidência
ou forte suspeita de que a garrafa não esteja correta, a empresa realiza
nova investigação para determinar a autenticidade do vinho e,
dependendo do resultado, pode rescindir a venda”.
Esse caso trouxe à tona os problemas e mostrou a ousadia dos
criminosos, porém também serve para a indústria se armar. Depois de
descobrir que muitas de suas garrafas eram falsas, o empresário Russell
Frye, por exemplo, decidiu investir no combate às falsificações, criando
um site onde congrega informações para todos os que querem impedir as
fraudes. Seu WineAuthentication.com serve como um fórum para
colecionadores e produtores que querem evitar esse problema, dando dicas
de empresas e serviços que ajudam a criar rótulos e sistemas à prova de
falsificações, assim como também descobrir garrafas falsas.
Segundo Maureen Downey, o mercado hoje está muito mais preparado para
lutar contra esse tipo de problema. “Infelizmente, fraude em vinhos não
é algo novo e não vai ser fácil. No entanto, tenho certeza de que
estamos começando a limpar a situação atual, pois há um nível de
vigilância maior do que nunca. Finalmente, a maré está definitivamente
virando a favor dos mocinhos”, diz.
A prisão de Kurniawan seria “o fim da inocência” no mundo do vinho?
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